Colunista | edgarlook – Espaço Memória – HR | INUSITADO COMEÇO DE DIA

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A preguiçosa manhã de domingo foi rasgada por um carro de som. A cidade está cheia deles. Passam anunciando bingo na igreja, desconto em restaurante, liquidação na lojinha. Eles vendem abacaxi, pão de queijo e pamonha “de doce e de sal”. Essa é a última característica interiorana que nos restou. Acordei a contragosto e levantei-me para fechar as janelas, fantasiando maneiras de jogar ovos no insolente. Antes de voltar para a cama, arrisquei uma olhadinha. Queria ter certeza de que acertaria o alvo, caso estivesse com o ovo nas mãos. Lá estava ele, bem pertinho, mas não se assemelhava em nada os carros de som que costumam passar por aqui.

O antigo utilitário, com apresentação de gosto discutível, era preto e trazia enormes corações pintados em vermelho, no capô e teto. “Love Car”, diziam as letras em azul, cortando os corações. Firmei a vista. Seria um cabo, saindo do painel? Sim. E, na outra ponta, um microfone e três crianças, de costas para minha janela. Curioso, fiquei aguardando a ação.

Visivelmente atrapalhado, o motorista trocou o fundo musical, deu sinal para o grupo e voltou correndo para abaixar o volume, para não encobrir a voz da criança que começava a falar. Na leitura mal pontuada, um gaguejante jovenzinho dizia palavras de carinho para a “mãe mais compreensiva e amiga do mundo”. Dos três, somente a menina recusou-se a falar — pensei em como a mulher é, em geral, pouco atirada.

Satisfeita minha curiosidade, dirigi-me para a cama, acalentando o sonho de voltar a dormir. Foi quando ouvi a voz de um homem feito. Voltei correndo para a janela. Estaria o motorista arriscando uma palinha? Não.

Era um apaixonado marido, gorducho, calvo e sem camisa, segurando um buquê de rosas vermelhas acima da protuberante barriga, e jurando amor eterno à aniversariante. A família conseguiu trazer às janelas os moradores de quase todas as residências no meu raio de visão e, ao final, todos aplaudimos a performance, cúmplices. Confesso que a minha primeira reação foi de deboche. Aquilo tudo era de muito mau gosto.

Tentei me colocar no lugar da aniversariante e senti um calafrio de mal-estar. Que mico! Mas acabei aplaudindo com a audiência. Afinal, era de amor que estávamos falando. Abandonei os planos de voltar a dormir e fui tomar café, com um sorriso nos lábios.

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